21.4.08

Artigo Revista Hystrio

Sobre um palco vazio, a média luz, Márcia Lança constrói uma pequena cidade. Lentamente, depois de surgirem as primeiras caixinhas de papel branco, grandes edifícios e chaminés aglomeram-se pelo espaço, e figuras humanas bidimensionais habitam a cena. A jovem coreógrafa portuguesa, provavelmente a maior novidade do festival Vie de Modena, descreve, sobre uma folha de papel, uma partida de futebol que disputou com um menino. Vai traçando e apagando marcas a lápis para explicar a acção. Esta é a primeira ideia para criar um mundo grande “dos joelhos para baixo”, como o título do trabalho. De um lado da cena estão formas geométricas que se transformam em casas. Dispersas, aqui e ali, estão folhas de papel para recortar pessoas. Na mão uma tesoura e um rolo de fita-cola. Poucos ingredientes, mas os suficientes para criar uma linguagem universal; um daqueles casos raros em que a escassez de meios se torna um brilhante imediatismo de relações e um estímulo à imaginação. Enquanto isso, nós, espectadores, de frente a uma cena branca como uma aldeia clara do sul no calor do meio-dia, imaginamos, numa silhueta, um indivíduo duvidoso com contas por saldar. Uma luz ilumina-lhe a face. E mesmo numa realidade de fábula aparente, o encontro com um seu semelhante acaba em violência. Repentinamente, a tesoura de Márcia Lança despedaça o que se havia esboçado. Num espaço que parece uma praça, um homem olha ao seu redor depois de ter sido preso ao chão em posição vertical. Uma igreja avança e, com o seu peso, esmaga-o. Além disso, é usada água para amolecer os corpos e aquecedores eléctricos para os secar. São sepultados homens injustiçados debaixo de montes de areia, mas também acontecem encontros amorosos e abraços dançantes consumados “no ar”, com as figurinhas em levitação, seguras pela manipuladora. Se a coreografia é a arte de desenhar no espaço, Dos joelhos para baixo enche o espaço de desenhos que não precisam de corpos que dancem, mas que vivem por si mesmos e se entregam à invenção de quem os vê.

Donati, Lorenzo. L’invenzione di un mondo di carta. Hystrio nº1, Janeiro – Março 2008, p. 30.

25.2.08

Enterramento

foto: iuri albarran

Sobre "dos joelhos para baixo"

Partindo de um desenho nascido no ATL da escola n°6 de Campo de Ourique em que os traços do lápis foram apagados pela borracha, notei que apagar sem deixar marcas era impossível. Passei, depois deste episódio, um ano a desenhar. O que fazia era seleccionar um momento do dia que tivesse tido lugar num espaço específico e desenhar os percursos que eu e outras pessoas tínhamos feito nesse lugar. Assim, para que nos pudéssemos movimentar no papel era necessário apagar-nos e redesenhar-nos noutra zona da folha. Notei que os percursos e os movimentos das pessoas no desenho podiam ser reconstruídos pelo rasto que era deixado ao apagar. Coloquei esta questão em cena, passando do suporte folha de papel ao suporte espaço. Mantive a folha de papel e trabalhei-a no estúdio fazendo-a interagir comigo. Surgiu destas experiências, que inicialmente se reduziam à transformação da matéria folha noutras matérias, uma série de acções com homens e mulheres de papel. Estas personagens são expostas a sequências de acontecimentos que determinam o seu fim ou continuação na peça. Uma cidade de papel toma forma lentamente.

Márcia Lança

Salvamento

foto: iuri albarran

Ficha Artística e Técnica

Criação e Interpretação _ Márcia Lança

Colaboração Artística _ Iuri Albarran e Tiago Hespanha

Música e Desenho de Som _ Nuno Morão

Desenho _ Márcia Lança

Fotografia _ Iuri Albarran

Residência Artística _ Espaço do Tempo, Montemor-o-Novo e Atelier Re.al*, Lisboa

Produção _ Sérgio Parreira - VAGAR

Difusão _ Sofia Campos - SUMO

Duração _ 30 minutos

Público _ > 8 anos

*Este trabalho teve início no contexto do LAB 12.1 no atelier Re.al, onde contou com a colaboração de Lénaïg Le Touze e com o acompanhamento de Cláudia Triozzi, Pedro Costa e João Fiadeiro.

Finalista do Programa Jovens Artistas Jovens

Biografias

MÁRCIA LANÇA

Nasceu em Beja em 1982. Estuda Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa. Em 2006 é finalista do Programa Jovens Artistas Jovens com o solo dos joelhos para baixo. Destaca o trabalho de intérprete com os coreógrafos João Fiadeiro (Existência e Para onde vai a luz quando se apaga?), Cláudia Dias (co-criação de 3 Figuras do Excesso, colaboração em Visita Guiada e interpretação em Das Coisas Nascem Coisas). Colaborou em 2005/06 com Olga Mesa no Pôle Sud em Estrasburgo. Inicia a sua formação em Artes do Espectáculo no Chapitô (1999/02). Da formação em dança destaca ex.e.r.ce 05 do CCN de Montpellier, o curso básico de Análise do Movimento, pelo IAM (2004) o Curso de Dança Contemporânea e Pesquisa de Movimento na SNDO de Amesterdão (2003), o Curso de Pesquisa e Criação Coreográfica no Fórum-Dança (2002) e a formação contínua no C.E.M. (2001/04). Estudou Voz no Conservatório Regional do Baixo Alentejo (1998/99) e desenvolveu composição vocal com Francisco D’Orey, Catherine Rey, Meredith Monk e Lúcia Lemos.


IURI ALBARRAN

Nasceu em Lisboa em 1981. Licenciou-se em Sociologia na Faculdade de ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa em 2005. Em 2001 estudou na Universidade de Paris 8. Durante esse período colaborou nas curtas-metragens Perto de Pedro Pinho e Lécher Vitrines de Mar Fazenda. Entre 2002 e 2005 foi investigador em projectos no âmbito da sociologia da saúde e dos comportamentos de risco no Centro de Estudos Fórum Sociológico e posteriormente, um estágio profissional de fotojornalismo no Diário de Noticias. Actualmente trabalha como assistente de fotografia com o fotógrafo Kenton Thatcher.


TIAGO HESPANHA

Nasceu em Coimbra em 1978. Licenciou-se em Arquitectura em 2004 na Universidade de Coimbra. Entre 2004 e 2006 trabalhou no atelier do Arq. Pedro Maurício Borges como arquitecto estagiário. Foi co-autor e produtor do projecto “relvinha.cbr_x” desenvolvido no âmbito da Capital Nacional da Cultura, Coimbra 2003. Em 2006 participou no Curso de Realização de Documentários da Fundação Calouste Gulbenkian, em parceria com os Ateliers Varan, no âmbito do qual realizou o filme “Quinta da Curraleira”. Desde 2003 tem produzido investigação teórica em temas relacionados com a visão na área da cultura e dos estudos visuais.


Agradecimentos

Ana Rita Costa, Andrea Brandão, António Lança, Bruno Caracol, Cláudia Dias, Cristina Cartaxo, Giacomo Scalisi, Lluis Ayet, Mafalda Oliveira, Marie Mignot, Meninos e Meninas do ATL da escola n°6 de Campo de Ourique, Natália Lança, Ninho de Víboras, Nicolas Duquerroy, Observatório Critico dos Jovens Artistas Jovens, Pedro Pires, Raphäel Michon, Sofia Campos, Tiago Lança.